Territórios Invisíveis da Vila Leopoldina - Parte I - Ligia Rocha Rodrigues*


Sou arquiteta e urbanista, formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Tive uma infância privilegiada, rodeada de amigos, bicicleta e brincadeiras de rua nos anos 1980 e 1990 no Alto da Lapa aproveitando nossos espaços públicos, as praças, as calçadas, Sesi e Pelezão. 

Depois de morar em alguns outros lugares, em 2008 voltei para o nosso pedaço, dessa vez na Vila Hamburguesa. Encontrei um lugar totalmente diferente, com mais gente, mais comércio, mais serviços e o mesmo acolhimento. Um bairro pulsante, com muita diversidade, moradores novos e antigos, pequenas casas populares e grandes condomínios de alto padrão. Olhar nosso bairro, como urbanista experiente e tendo agido sobre diversas realidades urbanas, suscitou em mim o desejo de estudar melhor a Vila Leopoldina. Concluí meu mestrado na FAU-USP em 2013 com o título: Territórios Invisíveis da Vila Leopoldina. 

Mas por que estou falando tudo isso? Porque acredito que para conversarmos com propriedade sobre os rumos que gostaríamos que nosso bairro tomasse com a saída do Ceasa é preciso conhecer sua história. A proposta é a seguinte: retirei do meu mestrado algumas ideias que acho que são importantes para começo de conversa e as publicaremos no blog. A primeira trata da chegada do Ceasa na Vila Leopoldina na década de 1960 e o que ele trouxe de diferente para o bairro e que vemos no bairro hoje. As próximas publicações avançarão no tempo, tratarão da diminuição das atividades do Ceasa e da nova cara que o bairro tem assumido, das propostas que a saída do Ceasa já recebeu desde os anos de 1990.

Uma grande enchente em março de 1966, adiantou a transferência do CEASA da região central para a Vila Leopoldina. A mudança não foi bem recebida pelos permissionários. Apesar da área estar bem localizada em relação às estradas, o sistema viário do bairro ainda não estava totalmente estruturado. As poucas casas da Vila Hamburguesa e do entorno da Estação Leopoldina estavam a aproximadamente 400 metros da área. Na data da transferência, as obras ainda não haviam sido concluídas e a área ainda não estava ligada à rede de energia elétrica.


Não são poucos os depoimentos encontrados que afirmam o estranhamento dos novos frequentadores do bairro ao se depararem com esta área que estava, paradoxalmente, totalmente desocupada, mas contendo ainda atividades industriais (portanto, urbanas) e abrigando um núcleo de características rurais. “Onde fica aquele Posto Esso na Gastão Vidigal era uma cocheira de vacas criadas na região. Naquele tempo, a gente chegava às sete horas com um copo na mão, retirava o leite das vacas e bebia na hora.”[18] A Vila Leopoldina nesse momento é peri-urbana, uma vez que está no espaço de transição entre o que é e não é a cidade. Segundo um dos permissionários recém-chegados ao novo CEASA, “isto aqui era um deserto com chácaras, bois, cavalos, galinha, etc.”[19]. Um lugar de chácaras cercado por dois rios canalizados que receberiam as avenidas marginais, com cocheira de vacas e tangenciado por duas linhas ferroviárias marcando um forte vetor de expansão urbana. As obras levaram mais dez anos para serem concluídas em 1979. Mas, durante esse período, a CEAGESP foi responsável pela aceleração da ocupação do restante do Loteamento da Vila Leopoldina. Em 1972 os quarteirões situados entre a CEAGESP, Av. Gastão Vidigal e Mofarrej eram compartilhados por indústrias químicas, metalúrgicas, de eletrodomésticos e inúmeros armazéns, depósitos e cooperativas agrícolas.

A intensificação das atividades produtivas e a chegada da CEAGESP na Vila Leopoldina trazem grande quantidade de empregos formais diretos e indiretos, mas também geram significativas oportunidades de trabalho informal, principalmente associadas ao entreposto. Carregar e descarregar caminhões, ajudar a levar as mercadorias dos clientes e “bater ripa”[20] são atividades que não requerem nenhuma experiência prévia ou habilitação específica e atraem trabalhadores desempregados para a região. Esses trabalhadores ocupam a posição mais baixa, pior remunerada e mais precária de toda a cadeia produtiva da CEAGESP e das atividades derivadas do entorno. Essa oferta de trabalho, e as sobras de comida que são encontradas no final dos períodos de venda, concentraram uma população de grande vulnerabilidade social nos arredores imediatos do entreposto e geraram, desde sua implantação, uma grande pressão por ocupação precária na área.

O mesmo crescimento populacional, que acelerou a mudança da CEAGESP da região do Mercado Municipal e da Zona Cerealista para a Vila Leopoldina, elevando a população de São Paulo dos quase um milhão de habitantes da sua fundação para mais de cinco milhões no momento de sua transferência[21], traz consigo uma grande demanda por produção habitacional. A ineficácia dos programas habitacionais no atendimento da população de baixa renda provoca um padrão de ocupação bastante precário, insalubre e totalmente irregular – as favelas. Não foi diferente na Vila Leopoldina depois da implantação da CEAGESP, onde as primeiras favelas se instalaram. A desativação do ramal ferroviário que acessava a Indústria Madeirit e parte da Rua Manuel Bandeira (antiga Japiaçu), no limite com a CEAGESP, foram ocupados por favelas lineares. A atração do trabalho informal derivado da CEAGESP e os espaços públicos não utilizados no seu entorno tornam-se a oportunidade dessa população de se fixar próximo às possibilidades de rendimento e sobrevivência.

A Favela do Nove – que leva esse nome por estar ao lado do Portão 9 da CEAGESP foi ocupada em 1972 e, segundo a prefeitura, tem aproximadamente 250 imóveis. A favela da Linha foi ocupada em 1973 sobre o antigo ramal ferroviário em terreno particular. Segundo seu cadastro, também conta com 250 imóveis.

Inaugurado em janeiro do ano 2000, o conjunto de 12 edifícios do Cingapura Madeirit, ou “predinhos” como se referem a ele seus moradores, soma 400 habitações de interesse social. Entretanto, o que se verifica é que as intervenções do projeto visaram prover unidades habitacionais apenas a parte dos moradores das favelas do entorno, sem mais intervenções no espaço precário do Nove e da Linha. Os espaços liberados pelos reassentamentos no Nove foram reocupados por outras famílias. A precariedade da área aumentou ao longo do tempo, decorrente de problemas ainda difíceis de serem contornados sem uma alteração mais efetiva nos programas habitacionais.

Essas três ocupações se somaram nas últimas décadas outros núcleos de ocupação precária. As favelas do Jardim Humaitá (1990) e do Jardim Haddad (1989). As favelas do viaduto Mofarrej e o pontilhão da CPTM foram ocupados e desocupados algumas vezes ao longo das décadas. A favela da Caixaria foi desocupada em 2005.

O Plano Diretor Estratégico de 2002 demarcou uma grande área de provisão habitacional, definida como Zeis 2 pelo Plano Diretor Estratégico de 2002 e ratificada pelo Plano Regional Estratégico da Subprefeitura da Lapa em 2004. Há nessa área um projeto que oferecerá 1.300 unidades habitacionais para a remoção das favelas da Vila Leopoldina e de outras regiões, como os antigos moradores da Favela do Moinho na região central da cidade, segundo declarações da PMSP à imprensa. A previsão é que o projeto tivesse duas fases e a construção de 10 torres, duas creches, padaria-escola, clube-escola e centro de reciclagem. Atualmente a obra da primeira etapa com dois edifícios foram retomadas.

Desde os anos de 1990, mas principalmente a partir dos anos 2000, muitos condomínios residenciais de padrão médio alto/ alto se instalaram na região, aumentando a população da Vila Leopoldina e ocupando áreas subutilizadas. Um bairro vibrante e cheio de vida é um bairro mais seguro, mas por vezes a convivência entre antigos e novos moradores não se dá de maneira harmoniosa. É preciso conhecer a história e as questões colocadas no espaço onde vivemos para poder agir de forma justa sobre ele. Na próxima publicação avançaremos pelas décadas de 1980 até 2010 para abordar com mais detalhe a ação e os efeitos do mercado imobiliário na Vila Leopoldina.




[18] Depoimento de Evaristo Oliveira da Silva para Fernando Costa em marco de 2005. Apud Sueli Gomes.
[19] Depoimento de Manuel dos Santos Ochoa para o Jornal Elo, março 2002. Apud Sueli Gomes.
[20]Bater ripa” é a denominação dada à atividade de consertar as caixas de madeiras e pallets utilizados no transporte de alimentos no entreposto. Apesar da intenção da CEAGESP de trocar o uso de caixas de madeira por outras menos perecíveis, ainda se vê em seu entorno grandes quantidades dessas caixas sobre as calçadas.
[21] Segundo o IBGE, a população de São Paulo era de 1.326.261 em 1940 e em 1970 elevou-se para 5.924.615. A CEAGESP foi criada em 1933 e transferida para a Vila Leopoldina em 1966.


*Lígia Rocha Rodrigues é arquiteta, moradora da Leopoldina

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